sexta-feira, 5 de março de 2010

Paganismo feminista na Revista Ultimato?

Carta enviada à Revista Ultimato em referência ao texto “Deus — Pai ou Mãe?”

Franklin Ferreira
Conquanto a revista Ultimato tenha um lugar de importância entre os periódicos evangélicos publicados no Brasil, alguns de seus autores têm difundido repetidas vezes opiniões que vão além do que nos é revelado nas Escrituras e em oposição à tradição evangélica. Em sua edição 318, de maio-junho de 2009, esta revista publicou o texto “Deus — Pai ou Mãe?”, escrito por Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, e presidente da JOCUM (Jovens com Uma Missão). Em 9 de junho de 2009 escrevi uma carta para a revista sobre este texto. Somente em 26 de agosto de 2009 recebi um tipo de resposta-padrão da editora: “Recebemos seu comentário, ele é sempre bem-vindo. Por uma questão de espaço nem toda correspondência que recebemos é publicada. Suas críticas, sugestões e/ou observações serão encaminhadas ao diretor-redator e articulistas para que eles tomem conhecimento”.
Abaixo, posto minha correspondência para a revista, ligeiramente revisada e editada.

Prezados irmãos,            
Preciso confessar que já há algum tempo ando desencantado com a revista Ultimato. Quando servi como membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, entre 2000-2007, minha esposa cuidou da livraria daquela comunidade. Fazíamos questão de promover a revista Ultimato, inclusive por meio de assinaturas, mesmo discordando de um ou outro texto — especialmente os de Ricardo Gondim e, algumas vezes, os de Robinson Cavalcanti e Paul Freston. Aliás, antes disso até, minha esposa já divulgava a Ultimato através de uma assinatura coletiva que mantinha com seus colegas de trabalho.
Hoje sirvo na equipe pastoral de uma igreja batista em São Paulo, e não tenho mais como indicar a revista como referência para os membros destas igrejas. O último escrito da Bráulia é um exemplo do que quero dizer. O texto intitulado “Deus — Pai ou Mãe?” é generalista, grosseiro e pagão.
Por exemplo, ela escreve a partir de sua experiência pessoal: “Minha experiência não é diferente do que é vivenciado pela maioria da população brasileira e do mundo. Mãe pra nós é igual amor caloroso, quente, cheiroso, vivo. Pai já é mais complicado. Pra muitos, infelizmente, pai significa abuso, violência, abandono, dor”. Bom, me permita compartilhar minha experiência. Eu sou pai de uma filha; ela tem oito anos. Não só a compreensão que tenho do que a Bíblia ensina sobre Deus o Pai, mas o que ela ensina sobre a paternidade me ajuda a agir para ser um pai de verdade para ela; duvido que a minha filha (inteligente e perceptiva que só) concorde com o que a Bráulia escreveu. E minha experiência como filho de igual forma não me permite concordar. Aliás, preciso notar que a autora consegue saltar de sua experiência pessoal para uma generalização infundada. Se ela supõe falar em nome de “muitos”, ela tem que provar seu argumento. Ela precisa mostrar quem são a “maioria da população brasileira e do mundo” que concorda com ela. Ou, se não, que ela restrinja-se a falar somente a partir de sua experiência pessoal, e pare de se esconder atrás de supostos “muitos”. Por outro lado, muito irônica a reportagem do Fantástico no domingo retrasado (24 de maio de 2009); uma mãe oferecendo sua filha para um “programa sexual” por... quatro garrafas de cerveja. E, depois, querendo vender sua filha por míseros R$ 500,00. Puxa! Isto é que é “amor caloroso, quente, cheiroso, vivo”! Segundo o Jornal Nacional, essa mãe foi presa na terça-feira passada (2 de junho de 2009). Mas esse é apenas um dos milhares de exemplos negativos em nosso país, em que há fartos exemplos de mães abandonando seus filhos ainda recém-nascidos. Menos generalidades superficiais, por favor. Em vez de fazer uma caricatura da paternidade, contrapondo-a superficialmente à suposta “perfeição” da maternidade (como se o pecado não desfigurasse igualmente maternidade e paternidade), ela faria muito melhor se mostrasse o que vem a ser a verdadeira paternidade e maternidade à luz da Bíblia. Não será ridicularizando ou rebaixando a paternidade que ela ajudará os homens a serem homens de verdade e verdadeiros maridos e pais.
Mais adiante, Bráulia escreveu: “Na América Latina, o continente onde o pai veio de longe e ao nos estuprar nos concebeu bastardos, vivemos no vazio da imagem masculina do amor. O pai se foi, e dói em nossa alma órfã”. Presumo que ela fale aí dos estrangeiros que vieram prá cá, para povoar e trabalhar nesta terra, em meio a grande sacrifício, fugindo da fome e da guerra no Velho Mundo e no Japão. Como muitos brasileiros, meu pai era português. O único membro da família que se converteu ao evangelho. Literalmente, morreu de tanto trabalhar (e ainda estudava num seminário teológico à noite, pois almejava servir no ministério pastoral) para dar uma vida digna para sua família. Exemplo de retidão e paixão pelo evangelho. Mais uma vez, Bráulia só pode falar por ela. Generalizações são toscas.
No fim, o pior. Ela terminou o texto orando com um ímpeto típico daqueles influenciados pela teologia feminista: “Pai-Mãe nosso celestial, acima do gênero e falhos modelos humanos, tenha piedade de nós, nos ajude a conhecer o verdadeiro amor...” Tomo a liberdade de citar, abaixo, o que escrevi com meu colega Alan Myatt na Teologia Sistemática que Edições Vida Nova publicou em 2007 (páginas 248-249). Respondemos ao uso indevido de imagens femininas para caracterizar Deus — prática bastante comum entre os pagãos do Antigo Testamento, que atribuíam sexualidade à divindade, como Baal e Astarote. Ao ir além da linguagem bíblica inspirada, que, no que se refere a Deus, é analógica — como ensinou João Calvino há muito tempo atrás, é a linguagem da acomodação da misericórdia divina —, Bráulia se colocou ao lado dos que abraçaram a teologia liberal e das feministas pagãs de nossa era. Se ela não se limitar agora à linguagem bíblica, não será um suposto “bom senso” que irá impedi-la de, em pouco tempo, tratar a deidade por... “Deus/a” ou, pior, “deusa”.
Lamento muito que a Ultimato promova este tipo de texto em suas páginas. Como disse, não foi o primeiro texto publicado na revista a gerar forte desconforto em mim. Por isto, reitero: por amor aos membros da igreja em que sirvo, não posso mais promover de boa fé a revista entre eles. Textos como este, longe de edificar, semeiam a contenda, a confusão e, no fim, uma representação pagã do Deus da Bíblia — majestoso, transcendente, cheio de glória, e que oferece o seu único Filho, em quem ele tem todo o prazer, para morrer por pecadores. Não preciso ir além da linguagem da Bíblia para, diante da revelação e beleza do evangelho, afirmar com as Escrituras que Deus Pai é amor, e sabemos disto, pois ele ofereceu seu único Filho como propiciação pelos nossos pecados, e este amor experimentamos em toda a sua exuberância por o Espírito Santo ter sido derramado sobre nós.
Ao responder às feministas, notamos que tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento usam o gênero masculino quando se referem a Deus. Uma dessas analogias é a analogia paterna.(1) Isto seria um indício de que Deus é do gênero masculino? Alister McGrath escreve:
Falar em Deus como pai é dizer que o papel do pai no antigo Israel permite compreendermos melhor a natureza de Deus. Isso não significa dizer que Deus seja do gênero masculino. Nem a sexualidade masculina, nem a sexualidade feminina devem ser atribuídas a Deus. Pois a sexualidade é um atributo que pertence à ordem da criação, sendo inadmissível aceitar uma correspondência direta entre esse tipo de polaridade (homem/mulher), conforme se observa na criação, e o Deus criador.
Na verdade, o Antigo Testamento evita atribuir funções sexuais a Deus, devido à ocorrência de fortes traços pagãos nesses tipos de associações. Os cultos à fertilidade dos cananeus davam ênfase às funções sexuais tanto dos deuses quanto das deusas; portanto, o Antigo Testamento recusa-se a endossar a idéia de que o gênero ou a sexualidade de Deus seja uma questão importante.
Então, para McGrath, qualquer tentativa de atribuir sexualidade a Deus representa uma volta ao paganismo. Ele continua: “Não há a menor necessidade de trazer de volta as idéias pagãs dos deuses e deusas para resgatar a noção de que Deus não é nem masculino nem feminino; essas idéias já estão potencialmente presentes, se não forem negligenciadas, na teologia cristã”.(2)
Na verdade, existem imagens maternais de Deus na Escritura. Deus é revelado como uma mãe pássaro (Rt 2.12; Sl 17.8; Mt. 23.37), uma mãe ursa que luta para proteger seus ursinhos (Os 13.8) e como uma mãe que consola seus filhos (Is 66.13). A presença de imagens paternais e maternais é evidência que apóia a conclusão de McGrath. Deus transcende as categorias do gênero humano. Não obstante, em lugar nenhum a Bíblia chama Deus de “mãe”. Portanto o título “mãe” não deve ser próprio para se falar da pessoa de Deus. Podemos reconhecer a plenitude da riqueza das imagens bíblicas de Deus, sem ir além da linguagem que a própria Bíblia emprega ao descrevê-lo.
1 — Cf. o capítulo 2, onde analisamos a natureza analógica da linguagem teológica.
2 — Teologia sistemática, histórica e filosófica, p. 315-316. Vale a pena ler toda a argumentação de McGrath nesta obra, com especial atenção para a citação final, da mística medieval Juliana de Norwich.
Fonte: Blog Fiel
Divulgação: www.juliosevero.com